Agentes da Balança -Primeira Impressão-

Poker não é um jogo de cartas jogado por pessoas, é um jogo de pessoas jogado com cartas, é uma guerra fria, estratégica, que quem vence nem sempre é aquele com as cartas na mão, mas o que mais sabe ludibriar o inimigo. E Adão nunca foi um bom mentiroso.

As imagens ainda passavam em sua mente, claras como uma memória do dia anterior, a chuva, a armadura, e é claro, Eva. Estava tão perdido em seus pensamentos que logo nas primeiras mãos, já perdeu todo dinheiro que havia posto na mesa. Pensou em ir embora, chegou a se levantar da mesa enquanto os amigos protestavam para que ele ficasse e Olavo sorria pegando suas fichas, também dizendo para ficar.

Eva também pedia e sempre que ele a olhava, sua mente se voltava para a estranha visão. Decidiu ficar, conhecer mais aquela garota que Olavo tanto conversava e cujo o nome era tão marcante.

Pegou mais fichas, às organizou em sua frente e tomou folego, voltando ao jogo. Após algumas mãos, ainda mais concentrado naquela cena que no par de damas em sua mão e a trinca que formou na mesa, Adão apanhou sua mochila e revirou-a por um momento, enquanto os outros jogadores faziam suas ações. Apanhou a folha amassada e a desamassou, lembrando-se de um detalhe que costumava colocar em todas as espadas que desenhava, o símbolo do Sol que estava gravado em seu escudo e armadura. Sorriu ao ver que era exatamente o mesmo símbolo na espada, amassou a folha novamente e a jogou dentro da mochila.

Para Adão, aquilo não passou da sua imaginação. Uma cena que lhe assaltou a mente por pura inspiração. Trataria disso depois, pensou, e voltou a concentração no jogo. Com as apostas na mesa, ele decidiu apenas acompanhar essa mão, pagando as apostas até seu termino e sua pequena vitória.

A medida que a noite avançava, também avançava a rivalidade de Adão sobre Eva, ambos ficavam sozinhos em várias mãos, se digladiando enquanto Rodrigo e Olavo acompanhavam do lado de fora, apenas rindo e provocando ambos os lados.

Mas Adão era um péssimo mentiroso, já Eva era exatamente o contrário, uma ótima mentirosa. Por sorte de Adão, ela ainda não sabia sobre ele e o quanto jogava passivo contra seus amigos. Em uma mão em especial, Eva começou a recolher as fichas e Adão tocou sua mão, mostrando suas cartas em seguida.

Eva sorriu, empurrou as fichas na direção de Adão e se recostou na cadeira, cruzando os braços e o encarando de olhos cerrados, mas sorrindo. Ele retribuiu o sorriso e respirou aliviado por dois motivos, tinha ganhado e não tinha visto mais nada ao tocar sua mão.

Já passava da meia noite e as fichas continuavam rodando pela mesa, sem ter realmente alguém que estivesse se saindo especialmente bem. Depois daquela mão, Eva começou a jogar com mais calma, mais lenta, desistindo mais fácil das mãos que entrava, Adão fazia questão de sempre pressiona-la, até o momento que Rodrigo o cutucou e disse sorrindo “Não bata no aquário*”.

Eva riu com o comentário de Rodrigo e se ajeitou na cadeira almofadada, embaralhando e unindo duas pilhas de ficha, uma mania que vários jogadores cultivam. Olavo a defendeu, dizendo que era não era inexperiente no jogo, Adão concordou em meio a um riso e Rodrigo se reservou a apenas acender um cigarro.

Ao fim da noite, Rodrigo já havia se retirado da mesa, sobrando os dois e Olavo. Já cansado, Adão decidiu por fim ao jogo, mas Eva pediu mais uma mão e ele não pode recusar. Saiu com um par de dez na mão, Eva aumentou a aposta e Adão aumentou também. Olavo riu e saiu, começando a contar a ficha, deixando a briga apenas para os dois.

As cartas na mesa, Adão havia conseguido uma trinca, mas havia um perigo ali. Além do dez, um nove e um valete deixavam fácil acontecer uma sequencia. Primeira a apostar, Eva levantou os olhos para Adão, que a encarava batendo o indicador sobre as cartas. Ela passou a vez e ele apostou, Eva aumentou e Adão apenas cobriu. A próxima carta veio um quatro. Ela passou a vez e novamente Adão apostou, Eva dessa vez apenas pagou a aposta.

A ultima carta foi um ás. Eva apostou, Adão aumentou com tudo que tinha. Eva olhou para as cartas na mesa, para o bolo de ficha na frente de Adão e depois para o homem, que continuava a lhe encarar. Ela sorriu, olhou suas cartas e depois encarou Adão.

__Você está me perseguindo não é mesmo?

__Só estou jogando. –respondeu cansado- É assim que eu jogo.

__Com quem? –riu Olavo, guardando as fichar em uma gorda maleta-

__Eu acho que você não mente muito, não é? –ela passava os dedos nas suas cartas sobre a mesa- Mas você não tem uma trinca ou dois pares, você não teria ido até o fim se tivesse… Então…

__Então?

Eva olhou novamente para suas cartas e pagou a aposta, mostrando a dama na mão e o oito em seguida. Adão empurrou suas fichas com força e jogou suas cartas sobre a mesa. Olavo deu uma olhada rápida e riu, se levantando.

__É Adão, ela não mentiu quando disse que era boa.

Adão a encarou e ela fez o mesmo, com um sorriso vitorioso nos lábios. Se levantou e deu um tapinha no ombro daquele homem.

__Relaxa. –disse sorrindo- Depois você ganha de mim. É assim que funciona, um dia eu ganho, outro dia você ganha.

Depois de se despedirem, Eva pegou carona com Olavo e Adão foi embora em seu próprio carro. Sozinho com seus pensamentos, voltou a lembrar do que havia visto e de como era a sensação de disputar cada mão com Eva.

Era como se estivesse lá, novamente, na chuva.

Em casa, Adão apenas tirou a roupa e se deitou, sem tomar banho ou fazer qualquer outra coisa, apenas se deitou e ficou repassando a noite em sua mente.

Eva ao chegar em casa, foi ao seu quarto e se serviu de uma taça de vinho, ligou uma musica calma e relaxante e ficou mais a vontade, vestindo um pijama. Em seu quarto havia sempre uma tela para pintura e uma luz forte que a auxiliava a pintar a noite. Começou devagar, pincelando tons de amarelo e laranja, até se concentrar um pouco mais e terminar um simples sol, a partir daquele desenho, começou a incrementa-lo e ao fim, viu o símbolo do Sol estampado a sua frente. Terminou a taça de vinho encarando aquele circulo amarelo a sua frente.

Eva pegou uma lata de tinta roxa e se serviu de mais uma taça, bebia lentamente enquanto ainda encarava o quadro e aquele símbolo. Com a taça pela metade, a olhou por um momento e a terminou, pegou o balde de tinta e o jogou sobre o sol amarelado, o cobrindo. Viu a tinta escorrer lentamente até o cobrir por completo e pingar no chão.

Foi até a janela e fechou a cortina para evitar a luz do sol que nascia. Deitou na cama finalmente satisfeita e fechou os olhos, dormindo um sono sem sonhos.

Amor sobre a mesa de poker.

Acredito que o maior problema de se trabalhar em uma Pioneira é o fato de termos que abandonar nossas casas, nossas famílias, nossa antiga vida, para um bem maior. Alguns conseguem trazer a família, a maioria na verdade, mas não foi meu caso. Minha mulher e duas filhas ficaram na Terra, enquanto eu embarcava na Pioneira III, rumo a algum planeta de nome estranho.

Senti saudade nos primeiros meses, falta do afeto e do carinho, das conversas e dos amores, mas só nos primeiros meses mesmo. E nesses meses a ideia de que elas nunca mais precisariam trabalhar na vida e viveriam com uma pequena fortuna já me confortava. Na realidade, talvez eu quisesse mesmo isso, vir e elas ficarem. Sabe, sempre fui um homem muito solitário.

Nas Pioneiras, a comunicação com a Terra é bem limitada, cada vez o espaço entre uma e outra aumenta por causa da distancia, até que após cinco anos, apenas mensagens de sistema e do alto escalão chegam na Terra. Eu sempre soube que não teria mais volta, assim que entrei na nave, que não veria mais minha mulher e filhas, que não as veria crescer e não estaria lá. Mas o dinheiro sempre estará.

Como funcionário sou mecânico, especializado na condicionação e tubulação do ar. Oxigênio é uma coisa bem importante aqui, mas eu não mexo com ele, só com sua distribuição. Quem mexe realmente com ele são os botânicos, sabe como é, os hippes que ficam no centro da nave.

Bom, agora que você me conhece, posso dizer como é a Pioneira. Imagine uma nave gigantesca, tão grande que teve de ser construída fora da Terra porque não conseguiria decolar. Ela é do tamanho de uma cidade de pequeno porte, ou um pouco maior. Entenda que, assim que ela pousa em um planeta, ela não decola mais. Logo, ela fica em orbita durante muito tempo estudando um possível planeta a ser colonizado, então ela pousa e, a partir dela, começa a colonização, com a nave como ponto zero.

A oito anos estamos sem encontrar algo, mas como eu disse, a nave por si só é gigantesca. Temos nosso dinheiro, nossas lojas, cinema, cafés, bares, prisão, politica… Tudo. E é claro, nosso pequeno cassino, onde passo meu tempo livre fazendo um adicional. O nosso cassino está em uma ala privilegiada da Pioneira, onde um teto panorâmico permite a visão do espaço sobre nossas cabeças. E sabe o que é mais incrível? É o que aconteceu comigo, sobre uma dessas mesas de poker.

Sempre fui o tipo de jogador calado, que senta na mesa e joga muitas, muitas mãos. Eu passo de quatro a seis horas jogando poker, por dia, e consigo uma consistência de vitorias que está aumentando meu banco aqui na Pioneira, mas naquela noite em especial, o que ganhei foi uma das experiências que finalmente me convenceram.

É ótimo estar em uma pioneira.

Era uma noite, logo após meu expediente, onde sentei na cadeira de estofado avermelhado e pus minha caixa de fichas do meu lado, bocejando e me espreguiçando, olhando para alguns rostos conhecidos e outros novos. Tudo ia bem, até o momento que ela sentou em uma das cadeiras vagas, ao meu lado. No começo não dei atenção, cheguei até a disputar uma ou duas mãos com ela.

Decidi respirar um pouco ao perder uma grande aposta e fui ao bar, pedindo um suco de morango. Bebidas alcoólicas eram luxo nas Pioneiras, normalmente vinham de coleções pessoais ou pequenas plantações dos botânicos. O balcão era iluminado por uma luz interna que deixava toda sua superfície clara, onde eu me debrucei ao falar com o atendente, pagando com uma das fichas do casino. Ele sorriu para mim ao trazer o suco sem demora.

Já a garota foi outro caso, ela se sentou novamente ao meu lado e pediu a mesma coisa que eu, dando um sorriso amigável ao me ver. Retribui o sorriso e lembrei da minha mulher e minhas filhas. Lembrei das noites de amor de nossa juventude e da ultima noite que fizemos amor antes da minha partida. É o morango, sabe? Afrodisíaco.

Ela puxou papo comigo, disse estar desconcentrada pelo cansaço, que havia trabalhado demais e não estava dando tudo de si ao jogo. Eu concordei e disse o mesmo, procurando criar uma sensação em comum para compartilhar.

Aquela mulher não era a mais bonita sabe? Seus cabelos eram castanhos, emaranhados em um visual um tanto desarrumado, como quem acaba de sair do serviço. Seu rosto era claramente latino, assim como seu corpo… Saudável. Tinha bonitas pernas e um pescoço atraente, que ela fazia questão em mostrar ao jogar os cabelos para trás dos ombros.

Ela estava me flertando, sem duvida, e eu, caindo em seu flerte. Mas uma pessoa como eu não apenas se entrega, se faz de difícil para ficar mais interessante, aumenta o valor do produto sabe? O produto no caso, sou eu.

Conversa vai conversa vem voltamos pra mesa, sobre o aviso que o casino iria fechar em duas horas, para manutenção. Ele fechava apenas uma vez por semana e durante muito pouco tempo, e hoje era exatamente esse dia. Houve uma vez que ele passou quase três dias fechado, o povo começou a enlouquecer, foi um pandemônio, mas no final tudo se ajeitou.

Na mesa as coisas iam bem tanto para mim quanto para ela, ainda nos encontramos em algumas mãos, mas nada de tão emocionante. O cassino começou a esvaziar, as pessoas começaram a fazer apostas sem sentido quando lhe restavam pouco dinheiro e saiam para salvar o que tinham. Eu fui um dos últimos, mas quando ia indo, ela me pediu que ficasse.

Ela trabalhava no cassino, quer dizer, não exatamente, ela era parte da equipe de serviços gerais da nave e hoje estaria no cassino, disse que teria passe livre o resto da noite e que, nessas duas horas, poderíamos ver o espaço a sós, em silencio, tranquilos.

Não pude negar, nem mesmo resistir. Não vou mentir, não senti culpa ou tristeza pela minha mulher e família, fiz tudo por eles, tudo que podia e até uma coisa incrível, fui trabalhar numa Pioneira, uma das coisas mais altruísticas a se fazer. Mas, já que estou sendo sincero, acredito cada vez mais que o que eu realmente queria mesmo era fugir, correr daquele lugar. Não exatamente da minha família, mas da Terra, do povo, do mundo.

Enfim, não vou divagar em mim sabe? Isso não é sobre mim, é sobre aquela noite. Tive de ajudar ela durante uma hora, para arrumar, limpar, purificar, organizar e varias outras palavras que terminam em “ar” para que ela completasse seu turno mais depressa, então fomos a uma das salas com mesas para seis jogadores, ela estava vazia, sem musica, sem conversa, sem barulho de fichas. Apenas o zumbido que a nave sempre produzia e do ar condicionado. Eu mesmo já arrumei esse umas duas vezes.

Ela se sentou sobre uma mesa, ainda suada, tirando a roupa lentamente. Por um momento fiquei sem saber o que fazer, quase como se tivesse esquecido depois de tanto tempo, mas depois fui até ela, tirando minha roupa.

Eu deitei sobre aquela mesa aveludada, que pinicou um pouco minhas costas, mas não consegui me importar com aquilo, não com ela sentando em cima de mim, devagar, enquanto me encarava nos olhos, já com o rosto cheio de prazer.

Foi então que notei o teto, notei o espaço, notei as estrelas e uma nebulosa a distancia. Notei as cores naquele manto negro. Então eu entendi onde eu estava e o que estava acontecendo. Eu estava fazendo sexo no espaço, vendo o espaço sideral a uma distancia quase palpável. Quantas pessoas já tiveram esse luxo? Essa experiência? Muitas das Pioneiras, acredito, mas e quanto as pessoas na Terra?

Segurei seu quadril enquanto ela subia e descia, gemendo e suando. Seu suor caía sobre meu corpo, eu sorria mas ao mesmo tempo me preocupava, amanhã seria o dia que voltaria aqui para arrumar esse ar condicionado. Como eu pude pensar nisso naquele momento tão sublime? Estava fazendo amor com uma mulher, no espaço sideral, com estrelas e nebulosas, e me preocupando com o trabalho, com o ar condicionado a ser arrumado!

Finalmente me concentrei naquela mulher que nem sabia o nome, me concentrei naquilo que acontecia, me concentrei em seu suor, seu corpo, seu sexo.

Terminamos ofegantes, deitados sobre aquela mesa que ainda pinicava minhas costas, enquanto a Pioneira passava por aquela nebulosa. Sabe como é uma nebulosa? É como areia em gravidade zero, areia flutuando sem preocupação, sem forma, colorida pelas luzes e gases e sei lá mais o que. Mas posso lhe dizer que é lindo. Olhei para ela e vi o reflexo da nebulosa em seus olhos, as luzes colorindo seu corpo.

Então ela se levantou em um salto e começou a se vestir, me mandou fazer o mesmo, o cassino já iria abrir. Pulei e me vesti, rindo e a convidei para voltar as mesas. Ela recusou, o turno dela havia dela havia recomeçado no momento em que começou a trabalhar no cassino, estava apenas no seu descanso, enquanto jogava.

Foi a ultima vez que a vi, quando ela saiu pelo portão principal, com seu cabelo suado e seu sorriso satisfeito. Eu voltei pras mesas, mas não consegui me concentrar e depois de perder um bocado, voltei para meu quarto.

Adormeci rapidamente, mas não sem antes relembrar daquela mulher, de seu suor e da nebulosa.

Como é bom viver em uma Pioneira.