Sábado a noite

Ramon imaginava, ao esperar a chegada de seu velho conhecido, qual nome estaria usando. Seria um nome italiano como seu país ou seria algo mais moderno, mais “da hora”. Lia com um sorriso de quem vê algo absurdo um livro de capa preta, sentado à vontade em um pequeno café muito bem iluminado, com as botas pesadas sobre a mesa. No rosto jovem um óculos escuros aviador de lente azul se punha entre seus olhos e as páginas comicamente absurdas que lia.

A garçonete, como se diz por essas bandas, popozuda? Era essa a palavra? Ela trouxe um café gorduroso, com placas de algo que Ramon não fazia ideia do que era, mas pareciam nojentas, flutuando sobre o liquido marrom na xicara. Ele a olhou e sorriu, seus lábios finos formaram uma meia lua rosa em seu rosto. A garçonete não disse nada, mas achou aquele rosto completamente absurdo, como em um pesadelo, ao se olhar para alguém realmente belo que na realidade é o próprio diabo.

A sineta em cima da porta badalou e Ramon tirou os olhos do livro, um homem mais alto e forte que ele entrou com os olhos cerrados, certamente incomodado pela claridade. Suas roupas pretas e a jaqueta pesada tornavam aquele homem uma figura fora do quadro, como se não pertencesse àquele lugar. Seu rosto era tão marcante que, se ele fosse posto entre uma multidão de italianos, você poderia dizer que ele era o único italiano de verdade. Os cabelos negros, grandes, emaranhados e bagunçados, soltos sobre o rosto cansado e nervoso. Ramon levantou com um sorriso sincero, mostrando os dentes, largou o livro sobre a mesa e acenou, logo apertando vigorosamente a mão do companheiro quando este se aproximou.

__Sente-se! Sente-se! Bem-vindo ao Brasil! –disse com o sorriso de dentes brancos como marfim- Ainda se chama…

__Martino, sim. –disse sentando na poltrona em frente a Ramon- Eu recebi sua carta, Ramon. –sem sorrir, olhou o café e voltou a olhar para o homem loiro a sua frente- Ramon… Já esteve na França ao menos?

__Eu não, nunca. –sorriu em meia lua e sentou, tomando um gole do café seboso- Então… Faz quanto tempo? Dez? vinte anos?

__Quarenta. –respondeu finalmente esboçando um sorriso- Você não mudou nada, nem o corte de cabelo.

__Quarenta? –falou surpreso- Então… Isso dá… Década de oitenta não foi? Naquela época dos… Lembrei! –disse fazendo um estalo com os dedos- A última vez que nos falamos você estava negociando alguma coisa com o… Aquele do boys dont cry –dise cantando- O tecladista… Matthieu. Eu lembro, você estava bravejando com ele por ele largar a banda não era? Você dizia que…

__Sim, ele largou a banda porque estava “obscura demais”. Maricas.

__É verdade, bem gótica, do jeito que você gostava. Década de oitenta, veja só… –disse nostálgico- As pessoas ainda acreditavam que existíamos, tinham medo da nossa raça. –Martino arregalou os olhos, Ramon fez um “piff” com a boca e um aceno para que não se preocupasse- Ninguém mais acredita em nós, se alguém ao menos ouvir essa conversa, vão pensar que somos dois esquisitões em um café, só isso. Ainda mais aqui, no Brasil? Rá! Aqui ninguém dá a mínima! Tem um ou dois góticos esquisitos ou uns malucos que fumaram maconha demais, mas de resto, ninguém. Somos cainitas, e daí? Aquela “popozuda” ali nem sabe o que é isso!

__Popozuda?

__É como chamam mulher com a bunda grande por aqui. –disse em um suspiro- Onde você esteve todo esse tempo? Em uma caverna?

__Enterrado. –respondeu sorrindo, olhou para os lados e aproveitou um pouco a liberdade de falar sobre aquilo em público- No início dos anos noventa e aquela loucura eletrônica, eu falei para mim mesmo que iria dormir alguns anos, para ver se melhorava, mas não melhorou porcaria nenhuma.

__Não mesmo, agora as crianças tem um novo som, como se chama mesmo… –Ramon tirou uma folha que já foi dobrada diversas vezes e a esticou sobre a mesa- Ah sim! Dubstep. É horrível, parece que colocaram um robô em um liquidificador.

__Robô… Issac Assimov, aquele tipo de coisa?

__É, é meu amigo Martino… É… Aquele tipo de coisa. De qualquer forma, como eu ia dizendo, ninguém mais acredita nos cainitas, olha isso aqui! –disse batendo o indicador com força no livro, sorrindo em meia lua, Martino conhecia aquele sorriso e não gostava, nem um pouco- Isso aqui fala sobre vampiros, lobisomens, uma garota meio idiota e, agora vem a melhor parte, os vampiros… –disse segurando o riso, olhando para os lados- Eles… Brilham no sol! –soltou uma risada alta e desconfortável, batendo a mão na mesa- Eles brilham! Acredita? Brilham!

Martino respirou fundo e tirou uma fita de seda preta do bolso, prendeu os cabelos que lhe incomodavam sobre o rosto e tomou um tempo para se acalmar e deixar a risada irritante de Ramon sumir naquelas paredes. Uma risada alta, rouca, que chamou a atenção dos poucos que ainda tinham coragem de tomar um café naquele lugar. Ramon tirou os óculos, os olhos perfeitamente verdes, sobrenaturalmente verdes, cheios de lagrimas, limpou ainda rindo e pôs o aviador de volta, olhando para Martino.

__Desculpa Martino… A tanto tempo não falo com um amigo que, sabe, perco a noção. –suspirou, Martino olhou seu peito inflar e sorriu com desdém- Eles brilham…

__Eu já vi um vampiro brilhar, era seis horas da manhã e eu corria como um louco para dentro do esgoto. Ele não teve a mesma sorte, quando o olhei estava lá, brilhando, o fogo isso sim.

__É verdade… É verdade… Já leu esse livro?

__Parei de ler na década de 50. –disse pegando o livro e olhando a capa-

__Então chegou a ler George Orwell?

__1850, com excessão do Issac Assimov e até pouco tempo, Terry Pratchett, só. –disse foleando tediosamente o livro- Esse livro aqui, dos vampiros brilhantes, fez muito sucesso?

__Se fez… Teve filme e um monte de coisa. Um dia eu estava entediado como nunca! Quer dizer, não tanto quanto no início dos anos 90, mas ainda assim, muito. Eu fui até um buraco qualquer em busca de alimento e encontrei uma garotinha de seus… Dezesseis anos. –Martino levantou os olhos do livro e lá estava o sorriso em meia lua- Dezesseis anos mas tinha uma das maiores bundas que já vi. Essas crianças de hoje em dia… De qualquer forma, eu estava tão entediado que eu falei para ela “Ei mocinha, eu sou um vampiro!” e ela nem deu bola. Aí eu mostrei meus dentes e fiz assim –abaixou os óculos e mostrou os olhos verdes- aí disse “eu sou um vampiro de verdade”. Você acredita que ela abriu um sorriso de orelha a orelha e falou “Namora comigo! Você é um tudo!” e ficou toda histérica. Eu… –disse rindo- Eu fiquei atônito sabe? Eu estava acostumado a elas correrem pelas suas vidas ou uma coisa mais sensual, aqueles sexos tórridos e cheio de mistério. Mas não! A louca pede para eu ser o namorado dela, você acredita? Por isso eu digo meu amigo Martino, não tenha medo de ser vampiro por aqui não, ninguém liga, ninguém dá a mínima. E se descobrirem, vão querer namorar com você!

Martino largou o livro e se recostou na poltrona, cruzando os braços. Ramon estava muito corado, seus lábios rosas e seu sorriso absurdamente medonho. Tinha certeza do que fazia, do esforço exagerado que fazia para deixar seu corpo com aquela aparência, viva, respirando, até suava. Ele por sua vez estava tranquilo, pálido, seu peito não inflava, seus olhos estavam sem vida como sempre foram, desde que se tornou o que era hoje. Ramon até parecia… Moderno. Ainda que suas roupas fossem claramente de um estilo dos anos oitenta, com uma jaqueta jeans com as mangas arrancadas, ainda assim ele estava lá, como um turista, como uma pessoa muito simpática, a ponto de levar sua família para jantar, ser seu amigo, acompanhar você em uma caminhada no parque. Mas Martino sabia que aquele ali era só o Ramon, que o verdadeiro cainita sobre aquela mascara já teve o nome de Christman Genipperteinga, famoso, lendário, com mais de 900 mortes vinculadas ao seu nome, conhecido na Alemanha, preso e supostamente morto na “Roda”.

__Ramon… Porque me chamou aqui. Eu prezo muito pela nossa amizade, eu só não consegui ainda desvendar o motivo.

__Para te libertar irmão! Ora, aqui é o Brasil! Sabe que cidade é essa? Nem eu! Ninguém sabe, ninguém se importa! Podemos viver tranquilamente aqui, nos alimentarmos sem problemas. E olha… Desde a década de cinquenta que eu venho lendo e lendo e lendo eu leio todas as noites! E não são livros de bruxaria, eu não mexo mais com isso, são livros, literatura, eu já li uns… Sei lá, eu perdi a conta. Mas é só o que me interessa agora. Aqui… aqui no Brasil eu posso ler, e ler e ler e ler e ninguém vai me incomodar, não vai nem suspeitar que sou o que sou, e se suspeitar, grande merda, ninguém vai ligar. E quando começarem a ligar, eu viro lenda e puff, sumo no ar, como sempre sumi, como sempre vou sumir, como sempre sumimos. Lá na Itália as pessoas, sabem, tem suas lendas, seus mitos… Ainda acreditam o suficiente, o Sabbath ainda faz muita merda por lá para assustar as pessoas, por aqui, a palavra Sabbath só é dos fãs de Rock and Roll!

__E você não? Você se desafiliou da mão negra? Fugiu? Está, como se diz, procurando a salvação por todos os pecados que já fez nos seus dias mais movimentados?

Ramon continuou com o sorriso de meia lua, a pele corada voltando lentamente a palidez costumeira, os lábios rosados perdendo a cor, se tornando esbranquiçado, sem vida. Ele tirou os óculos e seus olhos ainda brilhavam como um sinal de transito, verde, forte, dizendo vá, seja livre, pode passar, é a sua vez. Martino coçou o nariz em um sinal de desaprovação e sorriu, Ramon retribuiu o sorriso com os dentes pontudos amostra.

__Eu nem mais os guardo, quando preciso sorrir, sorrio de boca fechada. Algumas pessoas dizem “Nossa, você tem dentes como um vampiro” e eu digo, “é porque sou um” e todo mundo cai na gargalhada. –a garçonete veio e lhe serviu mais café, lá estava o sorriso em meia lua- Estamos desacreditados e eu prefiro que fique assim, por isso, por mais absurdo que seja “brilharmos no sol” espero que muitos e muitos livros desse ainda sejam feitos. –pegou o livro e o balançou- Eu não duvidaria nem por um segundo que essa escritora, se não for um membro, é um lacaio de algum de nós. Venha Martino. –levantou e tirou um bolo de notas de cinquenta reais enroladas em uma liga, tirou uma e jogou sobre a mesa- Eu vou procurar alguma coisa para comer. –sorriu mostrando os dentes- Sabe, eu costumava ter um rebanho no início dos anos noventa. Me entediei, vendi todos eles, cinquenta ao total, fiz fortuna.

Os olhos de Ramon brilharam à luz do luar, a noite realçando aquela aparência sobrenatural do rapaz, sua pele não brilhava, ao contrário, perdia o tom vivo, voltava a ser mais um morto vivo, um amaldiçoado a nunca mais ver o sol.

__Sentiu falta da caçada… Eu também. –disse Martino- Às vezes eu sinto, mas prefiro ter meu rebanho, mulheres rechonchudas… “Popozudas” como você chama.

__Ah, quer a garçonete?

__Não ela. Vamos andar, me mostre essa cidade que você tanto diz gostar.

__Sabe qual o melhor Martino? –disse abrindo os braços e girando- Não tem ninguém nessa cidade além de nós! Ninguém! Só eu e você. Só não os mate sim? Você diz gostar de ter um rebanho, que tal uma cidade inteira?

Ele gostou da ideia, uma cidade inteira, como nos velhos tempos onde ficavam em pequenos vilarejos, temidos, tratados as vezes até como deuses. Quando a poeira começava a subir, sumiam, desapareciam por anos e depois, lá estavam, de volta, em outra cidade.

__2013… –disse Martino parando Ramon por um momento- E você nunca me disse seu nome de verdade. Já estamos a quantos anos juntos?

__Seiscentos e trinta e sete. –Ramon olhou para Martino, dessa vez sério, as sobrancelhas reta no rosto- E por favor, não me lembre mais disso. A cada dia que passa, fico mais e mais entediado, um dia, eu juro para você. Vou enfiar uma estaca em meu coração e ver o sol nascer.

__Já fizeram isso, muitos fazem, sabia?

Ramon olhou para o céu e depois para Martino, pôs a mão no seu ombro, ia dizer algo, mas preferiu o silencio. Deu dois tapinhas em seu rosto e voltou a andar. Martino sorriu, Ramon sempre foi um monstro, mas sabia que estava diferente, estava cansado, perdeu o interesse até mesmo no pouco prazer que tinham. No final, queria apenas ler, viver e ler. Ele sabia que, quando perdesse o interesse pelos livros, iria fazer justamente isso.

Uma estaca, ver o nascer do sol e puff.

Quase setecentos anos de vida enfim, com um ponto final.