Apenas uma noite e um sorriso.

Apenas uma noite e um sorriso

Era difícil pensar naquela velocidade, oitenta, noventa, cento e vinte, aquela velocidade que só subia. Suas mãos passavam do volante para o cambio e do cambio para minha perna, só para voltar ao volante novamente e fazer uma curva fechada, que forçava meu corpo contra a porta. O sorriso dela era de vitória, uma mistura de euforia com loucura, de êxtase com desejo, que despejava toda sua essência para o resto do corpo, que deslizava e serpentava no banco daquele carro, apenas para fazer sentir-me como ela. Contudo a mistura de euforia com medo, de desejo com loucura, não era uma boa combinação para uma pessoa que assistia de camarote aquela mulher fazendo a oitenta por hora, curvas que deveriam ser feitas a sessenta.  Esquivando-se de carros e motos no centro da cidade, as vezes ela reduzia, as vezes acelerava ainda mais, girando e controlando com uma facilidade aquele volante, facilidade da qual eu não conseguia entender, tamanha a habilidade que seu Mercedes Bens conversível passava por sinais vermelhos e por cima das calçadas.

A única coisa que ela desejava era a velocidade, cada vez mais arriscada e perigosa. Antes de entrar no carro, ela me disse apenas uma coisa “Hoje vamos realizar um sonho americano.” Eu já sabia que não sairia vivo daquele carro, no momento em que ela alcançou cem por hora em uma avenida lotada. Quando comecei a balbuciar algo, ela ligou o som alto, em uma musica eletrônica, leve, mas animada, que fazia meu coração já acelerado, acelerar ainda mais.

Ela preferia as curvas longas, aquela em que o carro podia derrapar de maneira graciosa, deslizando com suavidade por aquele asfalto onde muitas outras pessoas passaram com a mesma idéia de realizar esse sonho, mas sem a coragem que aquela mulher tinha, aquela mulher que trocava a marcha rapidamente, mostrando sempre a habilidade quase sobrenatural que tinha sobre a maquina.

__A única coisa que importa é esta noite.

__E sobre as outras noites, antes desta?

__Confie em mim, baby… E ficaremos bem.

A sua mão pousou sobre minha perna novamente, subindo lentamente enquanto eu ouvia as sirenes da policia atrás. Eu me entreguei por completo a aquilo, deixando que minha vida ficasse na ponta da agulha, podendo se esvair a qualquer instante, instante esse que o carro giraria no ar, arrastaria no chão e nossos corpos ricocheteariam dentro daquele tumulo de fibra de carbono, quebrando cada osso e pedaço do nosso corpo. Tanto eu quanto ela sabíamos que era esse o fim daquela noite, seria nossos belos, belos corpos esparramados pela estrada, cada pedaço um mais longe do outro.

Mas a única coisa que importa é esta noite, as noites antes desta levaram a esta e as noites depois desta não nos pertence. A única coisa que importa era ela, suas mãos suaves deslizando sobre o volante e meu corpo, seu olhar fixo na estrada, a musica rápida do radio e as sirenes ao fundo. Não pensei em meus amigos, não pensei em minha família, não pensei nas mulheres que conheci ou que por ventura viria a conhecer. Não pensava em nada, nada alem do Mercedes Bens conversível, do cabelo curto dela agitado pelo vento e de seu sorriso.

Sorriso pelo qual pessoas morreriam, matariam, se submeteriam ao ridículo e a humilhação, sorriso aquele que eu estava dando minha vida para ver, aquele que você passa toda sua existência, acreditando que poderia vê-lo pelo menos em um momento, em um momento sublime de puro êxtase e delírio. Sempre acreditei que seria no sexo que veria tamanha divindade e não em um carro a cento e quarenta por hora, em uma via de mão única, em uma garota que conhecia apenas o nome e o telefone, alem de é claro de seu, Mercedes Bens.

Sentia à hora chegando, a hora que aquela beleza acabaria, que toda aquela maravilha, todo aquele sonho chegaria ao fim. Sentiu isso pois seu sorriso aumentava, seu olhar dizia tudo que eu precisava saber, disse que iríamos fazer isso novamente, que nossas próximas vidas seriam nada ate chegar a noite, aquela noite em que estaríamos em um carro, um carro a cento e oitenta por hora, um carro conversível a cento e noventa por hora.

Então tudo parou, ficou lento, devagar. As rodas da frente já estavam no ar e logo após as de trás, um carro qualquer havia atingido a traseira do Mercedes Bens, nos jogando para fora da rodovia. Tudo não importava, nem o carro que nos atingiu e nem as pessoas envolvidas, apenas o momento. Com o carro no ar, girando lentamente, ela me olhou nos olhos e, naquela pequena fração de segundo, vi o sorriso, aquele que você da sua vida para vê-lo, lembrei que em outra vida faríamos isso de novo e de novo, ate que aquela fração se tornasse um minuto e aquele minuto fosse eterno e, aquele sorriso, gratuito.